
Quem já passou por situação dessa, vai entender, se identificar e rir muito...
DEPOIS DO AÇOUGUE, ANTES DA BANCA - ANTONIO PRATA
" SE TEM uma coisa que o brasileiro gosta é de ensinar um caminho. Pode reparar: você encosta o carro no meio fio, diz "ei, amigo, p'favor, sabe onde fica a rua Fulano de Tal?", e, passado aquele sustinho inicial, o patrício se entrega, de corpo e alma, ao discurso e à gesticulação.
Por ser a informação no trânsito, entre nós, quase um ritual, segue um elaborado protocolo. Começa com a análise do pedido: o sujeito ouve o nome da rua, endireita a postura, limpa a garganta e repete, com a cabeça levemente erguida, os olhos semicerrados, vasculhando os mapas da memória: "Rua Fulano de Tal...
Rua Fulano de Tal...". Abre então os olhos, enche o peito, apoia uma mão no carro, a outra, com o indicador fazendo jus ao nome, aponta o horizonte e, com método e seriedade, começa a explanação: "Amigão, cê vai ter que fazer o seguinte...". Terminado o colóquio, ele te toma a lição, repetindo os pontos mais traiçoeiros: "Cê entendeu, né? O cotovelo é depois do açougue, antes da banca, tá? Não tem erro!".
Ouso dizer, sem querer desmerecer-nos tampouco falar mal dos outros, que nos países ditos "desenvolvidos" não se encontra essa genuína alegria auxiliatória. Não é que no "primeiro mundo" todos sejam antipáticos. Muito pelo contrário. Já perguntei caminhos nos EUA, na Inglaterra e na Holanda e fui muito bem tratado. Mas lá onde a grama é verde e os ônibus passam na hora marcada, você repara que a gentileza é uma imposição da cultura sobre o mau-humor natural do indivíduo: no fundo, o cidadão preferia não ter sido importunado em sua caminhada. Afinal de contas, qual o propósito de todo o processo civilizatório, com seus exércitos e carimbos, constrangimentos e premiações, senão garantir que as pessoas não encham muito o saco umas das outras, que cada um possa tocar a sua vida como queira, sem esbarrar nas arestas alheias? Aí vem um sujeito desgovernado, "Hello, monsiuer, s'il vous plaît, dónde está la estación?" e pronto, bagunça-se o coreto.
Já em nossa "pátria tão despatriada", é diferente. Aqui, a civilização nunca desfez as malas. Vamos por aí meio assustados, uma mão na frente e outra atrás, a desconfiança no canto dos olhos, esperando a bala perdida, o sequestro relâmpago, a enchente, o insulto.
Quando surge, portanto, um "ei, amigo, p'favor", não encaramos co-mo um desvio na organização, um imprevisto atrapalhando nosso bem traçado plano. É o contrário: uma proposta de parceria no meio desta barafunda. Um ponto de inflexão no desmantelo. Enquanto estamos ali, dizendo ou ouvindo "direita", "esquerda", "segundo farol, faz o contorno", abrimos uma tênue brecha na guerra de todos contra todos, escrevemos, por linhas tortas, um rascunho de contrato social.
Se tudo der certo e minha sociologia de botequim estiver correta, não está longe o dia em que o brasileiro, bem alimentado, educado, assistido e organizado, deixará de dar informações com tanto júbilo. Não lamentemos. Talvez a perda da espontaneidade seja um efeito colateral inseparável do desenvolvimento, e é aceitável um pouco de mau-humor, se cada um puder escolher o seu próprio caminho."
Folha de São Paulo - 08/06/2011
Ele é muito perspicaz, adoro as colocações dele, tomara que sua veia criativa permaneça durante muito tempo. Quem já não se pegou em uma situação dessas?
ResponderExcluirGosto muito de tudo que ele escreve é ótimo. Coisa de se pensar, se vamos chegar ao estágio de não ficar alegre quando alguém pede uma informacão. Por aqui até o povo ficar contente se você pede informacão, especialmente os idosos. Se bobear dá meia hora de conversa sobre as origens do local.
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